Quote of day #004
Tanto a espiritualidade como a sua “versão” mais “concreta”, a religiosidade (ou religião) podem ser auxílio em nosso enfrentamento da realidade. Somos formados por desejos, instintos, nossa parte “interna” nos move na direção do mundo e na concretização de nossos desejos, aqueles que se mostram possíveis dentro da realidade que nos cerca ou que se apresenta a nós no dia a dia. A espiritualidade pode nos ajudar a combater inclusive problemas e doenças que nos assolam mental e internamente, que interferem com essa “construção de uma noção da realidade”, ajustar dificuldades e nos trazer curas para faltas, dores e traumas, estresse, depressão e tantos outros males.
Porém, acontece que em meio a tudo isso, algumas vezes, diante da frustração gerada entre o meu desejo e a realidade, para muitos, pode ocorrer uma sublimação do desejo e ele fica “escondido” ou então é substituído por algo que é estereotipado, mascarando sintomas dos sofrimentos e transformando o problema que temos pela frente.
No meio religioso isso é mais frequente, principalmente porque o nosso “nível” de espiritualidade é alto demais (tem a ver com “expectativas” geradas em nós por aquilo que projetamos de Deus). A concepção que temos de Deus e das suas exigências na religiosidade contemporânea como um ser afastado do convívio ou da intervenção na história humana, pois é absoluto e não pode ser visto ou tocado e é exclusivo e único, sendo então santo na sua concepção. Esse ideal, cada vez mais alto, assegura ao meio religioso uma tentativa de “ser deus” na terra, assim, em contraponto com sua humanidade que aparece todos os dias, há um espaço onde projeções e expectativas são criadas e falham. A falha gera frustração e por conseguinte um mal estar.
Esta maneira de encarar a realidade e a frustração geram um sofrimento neurótico em nós. Freud falando sobre a neurose diz:
“Uma neurose geralmente se contenta em evitar o fragmento da realidade em apreço e proteger-se contra entrar em contato com ele. (…) na neurose não faltam tentativas de substituir uma realidade desagradável por outra que esteja mais de acordo com os desejos do indivíduo. Isso é possibilitado pela existência de um mundo de fantasia, de um domínio que ficou separado do mundo externo real na época da introdução do princípio de realidade. (…) Vemos, assim, que tanto na neurose quanto na psicose interessa a questão não apenas relativa a uma perda da realidade, mas também a um substituto para a realidade”.
O evitamento da realidade (no caso do meio religioso tendo como realidade a vida ser diferente do “ideal” de Deus) nos faz querer de certa forma nos proteger dessa realidade e então, neuroticamente, substituimos essa realidade “desagradável” (não conseguir ser como Deus é) por outra que fica mais de acordo com o que parece ser a concretização de nossos desejos – aí entra muita coisa, até mesmo a tentativa de “ser deus” na vida dos outros, mandando, ordenando, controlando, formatando. Pessoas que agem assim, geralmente tiveram, quando da introdução do princípio de realidade na suas vidas, algo que ficou separado, fantasioso e acabou por fixar este tipo de comportamento.
Vi um vídeo hoje, de uma igreja, dizendo que precisamos “dominar a terra”, “dominar a cidade”, um vídeo do evangelho da prosperidade que quer dar o tom das coisas de Deus naquilo que é puramente humano e demoníaco. Lembrei de Moltamann, que disse:
“Enquanto Deus foi concebido como sujeito absoluto, o mundo foi visto como objeto de sua criação, preservação e redenção. Quanto mais transcendente a concepção de Deus tornou-se, mais imanente eram os termos em que o mundo era interpretado. Através do monoteísmo do sujeito absoluto, Deus estava cada vez mais esvaziado de sua ligação com o mundo, que cada vez mais foi secularizado. Como resultado, o ser humano – uma vez que ele era a imagem de Deus na terra – deveria ser entendido como sujeito de conhecimento e vontade e deveria confrontar seu mundo com seu objeto. De fato, apenas tinha um só caminho para assemelhar-se ao seu Deus, Senhor do mundo: o de dominar a terra”.
Essa neurose do poder nos tira principalmente o contato real com Deus, a pessoa dele, o relacionamento com ele e nos faz ser “ídolos”, querendo tomar o lugar de Deus na vida das pessoas.
Eugene Peterson diz um pouco sobre isso, lógico que sua realidade é diferente da nossa, mas cada dia mais nos aproximamos dela:
“As pessoas que se reúnem em nossas congregações querem ajuda numa hora de dificuldade; querem um sentido e significado para as empreitadas da vida. Elas querem Deus, de certa forma, mas certamente não um “Deus zeloso”, nem o “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”. Em geral querem seus próprios deuses e ter o controle, mas precisam de ídolos assistentes para as horas difíceis, e é o pastor que mostra como fazer isso. Como desenvolvimento das linhas de produção, estamos fabricando esses ídolos em grandes quantidades, em cores variadas e em formatos que agradem a todos os gostos. A percepção teológica de Calvino somada à tecnologia de Henry Ford é igual à religião americana. Quando se vive no país do bezerro de ouro como vivemos, é fácil e atraente ser um pastor bem-sucedido como Arão”.
Será que ainda dá tempo de ajudar a transformar esta realidade que vivemos hoje?