27 Eu, porém, vos digo, a vós que me escutais: amais os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, 28 bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam. 29 A quem te ferir numa face, oferece a outra; a quem te arrebatar o manto, não recuses a túnica. 30 Dá a quem te pedir e não reclames de quem tomar o que é teu. 31 Como quereis que os outros vos façam, fazem também a eles. 32 Se ameis os que vos amam, que graça alcanceis? Pois até mesmo os pecadores amam aqueles que os amam. 33 E se fazeis o bem aos que vo-lo fazem, que graça alcanceis? Até mesmos os pecadores agem assim! 34 E se emprestai àqueles de quem esperais receber, que graça alcanceis? Até mesmo os pecadores emprestam aos pecadores para receberem o equivalente. 35 Muito pelo contrário, amai vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Será grande a vossa recompensa e sereis filhos do Altíssimo, pois ele é bom para com os ingratos e com os maus. 36 Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso. 37 Não julgueis, para não serdes julgados; não condeneis, para não serdes condenados. Perdoai, e vos será perdoado. 38 Dai, e vos será dado; será derramada no vosso regaço uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante, pois com a medida com que medirdes sereis medidos também.
Podemos assumir como que tradicionalmente Lucas como o escritor desse livro. Ele era um médico, amigo e companheiro de Paulo, que empreende com ele viagens missionárias e que resolve fazer uma investigação acurada dos acontecimentos que aconteceram na ocasião da vida de Jesus e narra, de forma meticulosa, e com o propósito de instruir, o seu Evangelho. Provavelmente o ano é 63 d.C, Paulo encontra-se preso em Cesareia e Lucas tem então, nos dois anos de prisão do apóstolo, tempo o suficiente para investigar, utilizando para isso fontes outras que não apenas a narração de alguns conhecidos. É bem possível que ele tenha utilizado o evangelho de Marcos para dar base á sua narração. Ele endereça o seu escrito ao excelentíssimo Teófilo, talvez um alto funcionário do governo a quem ele deseja instruir de fatos ou aumentar o conhecimento do mesmo a respeito de Jesus. É nos difícil estabelecer o lugar vivencial do momento de nossa perícope (Lucas 6.27-39), mas Jesus e seus discípulos encontram-se em movimentação, e Lucas apresenta um resumo do que Jesus ensina durante muito tempo – resumo este com o objetivo de instruir normativamente (quem sabe eticamente!) utilizando para isso muito dos escritos do Antigo Testamento, para basear-se na autoridade do que era escritura até então.
Jesus e seus discípulos estavam caminhando, indo da Galileia até Jerusalém, e estão aqui perto de Cafarnaum. A Galileia é o reduto da pobreza, da discriminação, dos salteadores, pois é rota de comércio e Jesus utiliza-se da própria vida e exemplos dos seus discípulos para estabelecer os critérios do seu ensino.
A vida religiosa em Israel era completamente sectária fazendo com que muitos inimigos aparecessem e tratassem os habitantes das cidades onde Jesus passava e ensinava em pessoas discriminadas e oprimidas. Daniel-Rops nos informa que muitos habitantes da Galileia estavam endividados e vendiam suas propriedades para pagar suas dívidas. (Daniel-Rops, São Paulo, p. 37). O historiador Wander de Lara Proença nos informa que a nata religiosa de Israel no tempo de Jesus, os saduceus, fariseus e escribas, eram possuidores de muitas destas terras, provavelmente por falta de pagamento dos altos impostos do templo.
Jesus então não estava apenas querendo ensinar o povo algo que ficava distante dele, mas sim fazê-lo ver que a vida diária possuía necessidades e estas precisavam ser medidas pelo amor e não pelos interesses. Essa mensagem de Jesus retrata um amor que vale a pena, um amor que não exige nem pede nada em troca, mas se entrega.
O amor é o tema central da perícope (Lucas 6.27-39) e Lucas parece desejar fazer com que Teófilo entenda o amor além do interesse, o amor que age em favor de outro e não apenas espera receber o bem.
Jesus, ao olhar para a multidão vê um povo sofrido, oprimido pelos seus credores, muitos quem sabe tendo perdido túnicas, mantos, casas, filhos, terrenos em dívidas, mas ele não subverte a situação ou transforma o contexto, mas ele exerce o seu poder de ensino para mostrar aos seus discípulos que é necessário viver com Deus, amando como ele, no meio de toda essa dificuldade e miséria. Miséria é justamente o termo que faz surgir a ação graciosa de Deus, dando misericórdia para ingratos e maus e sem esperar recompensas ou troca – quem está na miséria não tem o que oferecer de volta.
Quando Jesus fala para os seus discípulos ele não está simplesmente estabelecendo um critério difícil demais, mas está invertendo os valores estabelecidos pela própria religiosidade da época. O rico, o poderoso, o forte, são imagens fortes para o ‘modus vivendis’ do contexto em que se encontrava, mas ele mostra que a riqueza, o poder, a força muitas vezes são apenas camadas da atuação do mal, onde os ricos, poderosos e fortes oprimem, maltratam, injuriam, caluniam, difamam aqueles sobre os quais desejam exercer influência ou controle. Mesmo o pobre, que tem menos acaba por fazer – quando em posição de poder – o mesmo que o rico (é só lembrar da parábola do credor incompassivo para termos a exata noção disso).
O amor que Jesus prega é excelente, pois não se baseia no que pode receber em troca, mas no que faz consigo mesmo – ou seja, em QUEM AMA – a recompensa pelo amor dado é transformação o discípulo em filho do Altíssimo e também a graça superabundante de Deus será derramada sobre aquele que ama, não apenas como o que empresta para receber igual, mas algo recalcado, sacudido, transbordante, que produz alegria e contentamento além do entendimento.
Jesus ensina que a graça de Deus sobre aqueles que amam produzem melhores resultados que o recebimento imediato dos bens que podem nos oferecer em troca de nosso amor . É nessa condição que o discípulo de Cristo é levado por ele a amar além da medida; a entregar em favor do outro, mesmo que não receba de imediato o que tanto queremos (quem ama quer ser amado!), mas é mister saber e reconhecer que em muitas situações não teremos recompensas no amor do ponto de vista puramente humano, mas cresceremos recebendo e conhecendo mais do amor de Deus.
Assim, é mais fácil entender que AMOR para Jesus não é um sentimento que se tem, com pensamentos românticos sobre a vida, mas uma ATITUDE de ir em direção ao outro, de amar INCONDICIONALMENTE e podemos pensar que isso é POSSÍVEL, mesmo que dificil, pois a inversão de valores é que nos faz pensar que amor assim só existe em Deus . Deus mesmo nos dá condições de amar assim, pois facilitou todo o processo e colocou em nós o seu Espírito Santo que vem pra FRUTIFICAR através de nós, tornando-nos canais de seu próprio amor e atuação misericordiosa – podemos amar , pois Deus mesmo, em Cristo, através do Espírito Santo em nós frutifica com o seu amor .
Essa completa inversão de valores que Cristo propõe é uma atuação direta na cultura e sociedade da época, mostrando que a religiosidade apenas consegue repetir fórmulas, ritos e cerimônias (eventos, festas, tradições), mas que a verdadeira espiritualidade tem a ver com a condição de nos jogarmos na vida de amor pelo outro, pelo igual, mas também e principalmente amor pelo diferente, pelo que está afastado, pelo que precisa ser resgatado.
Amar como Cristo amou é proporcionar em nós terreno fértil o suficiente para Deus amar através de nós .
Os discípulos de Jesus, vivendo num contexto onde a dor e o sofrimento pela pobreza, pelos maus tratos, pelos salteadores, por altos impostos, por impostos duplicados e tantas outras formas de opressão ouvindo as palavras de Jesus devem ter ficado com a pulga atrás da orelha, e como alguns expressaram mais tarde, achando duro demais o discurso de Jesus.
A vida hoje não difere em sua essência da vida nos tempos de Jesus – o ser humano decaído continua caído e vive muitas vezes conflitos que são em muito semelhantes aos daquele época. Os valores continuam invertidos e muitas vezes eles são simplesmente colocados de lado ou até mesmo cria-se novos valores para a vida.
Paul Tournier, em seu livro Mitos e Neuroses diz: “assim como se pode por os valores ‘entre parênteses’ e viver como se não existissem, também se pode adotar novos valores, fabricar os próprios valores” e então “a minha liberdade é o único fundamento dos valores e nada, absolutamente nada, justifica que eu adote um determinado valor, esta ou aquela escala de valores… E a minha liberdade me angustia por ser o fundamento sem fundamento dos valores” (Tournier, 2002, p. 32).
Vivemos em meio a uma cultura hedonista onde tudo precisa resultar em ganhos significativos – é preciso trazer: fama, conhecimento, riqueza, bem estar pessoal, satisfação de desejos etc. Culturalmente definido é a não perseverança ante situações de risco ou mesmo um desânimo completo a partir da necessidade de perseverar. Encontramos na palavra perseverança uma barreira para a continuidade – no grego a palavra ( que é proskartereo ) “significa dar continuidade a uma ação após intenso esforço” – não indica uma ação óbvia mas é uma temática de permanecer (ou perseverar) a todo e qualquer custo. A perseverança que gera um desconforto ou mesmo uma necessidade de permanência em um determinado pensamento ou posicionamento é rechaçada como antiquada, fora de propósito ou mesmo uma interpretação errônea.
Vemos então que mais do que nunca precisamos das palavras de Jesus, pois como diz Gabriele Greggersen “… o principal objetivo da educação é ensinar as virtudes (especialmente a prudência) a este ser ‘esquecente’, que é o homem, pois as mesmas não são inatas, mas adquiridas pela educação e experiência” (Greggersen, 2001, p. 89) e assim ensinar a nós e aos outros as verdades que Jesus muito profunda e sabiamente nos ensinou em através do relato de Lucas e assim promover uma transformação de nossas vidas, igrejas, comunidades e cidades.
Enfim, o evangelho, as palavras de Jesus e suas ações práticas em direção ao outro, com amor que não reinvidica para si ganhos, mas assume-me ganhador pelo próprio amor demonstrado e vivido são tão atuais e necessárias hoje como sempre o foram e serão enquanto estivermos nessa realidade.