Nos últimos anos, as redes sociais evangélicas no Brasil têm sido palco de intensas discussões sobre supostos casos de perseguição religiosa. A cada decisão judicial, crítica acadêmica, reportagem investigativa ou iniciativa legislativa que mencione religião, não faltam vozes denunciando “ataques à fé” e proclamando que os cristãos estão sendo perseguidos.
Mas até que ponto essas denúncias correspondem à realidade? Será que vivemos, de fato, um contexto de perseguição religiosa, ou estamos diante de um conflito de narrativas, no qual a perda de privilégios históricos é interpretada como perseguição?
Começando pela questão civil e legal, vemos que a Constituição Federal de 1988 garante expressamente a liberdade religiosa em seu artigo 5º, inciso VI:
“É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”
Segundo o último relatório da USCIRF (U.S. Commission on International Religious Freedom, 2025), o Brasil é considerado um país com pleno respeito à liberdade de religião e crença, sem registro de perseguição sistemática promovida pelo Estado. Relatórios da Open Doors (Portas Abertas), organização que monitora perseguição a cristãos, também confirmam que o Brasil não figura entre os 50 países onde a fé cristã é perseguida.
Ainda assim, líderes religiosos e parte da base evangélica frequentemente associam críticas à religião, decisões judiciais contrárias ou debates públicos sobre laicidade ao fenômeno da perseguição. Esse uso inflacionado do termo cria ruído e desvia a atenção de casos reais que mereceriam atenção internacional.
A palavra “perseguição” carrega um peso histórico e teológico profundo. Jesus advertiu seus discípulos:
“Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.” (Mateus 5:10)
Ao longo dos séculos, cristãos enfrentaram perseguições brutais sob impérios hostis, regimes totalitários e ideologias anticristãs. O historiador Kenneth Scott Latourette (1953), em sua obra A History of Christianity, descreve detalhadamente como, nos três primeiros séculos, o cristianismo cresceu sob perseguição romana, marcada por execuções, destruição de templos e criminalização da fé.
Comparar esses contextos ao Brasil contemporâneo, onde igrejas são abertas livremente, cultos são transmitidos ao vivo e líderes religiosos ocupam espaços midiáticos e políticos estratégicos, é, no mínimo, anacrônico. O que ocorre hoje está muito mais próximo de tensões discursivas típicas de sociedades democráticas plurais do que de perseguição religiosa propriamente dita.
Parte da confusão se deve a um equívoco conceitual recorrente: crítica ao discurso religioso não equivale a perseguição à fé.
Em sociedades democráticas, instituições religiosas, como qualquer ator social, estão sujeitas ao escrutínio público. A laicidade do Estado, princípio constitucional (CF/88, art. 19, I), não implica hostilidade à religião, mas sim neutralidade: o Estado não deve favorecer nem prejudicar nenhuma crença.
O teólogo e jurista Paul Freston (2004), especialista em religião e política no Brasil, argumenta que “a pluralidade religiosa e a crítica pública fazem parte da maturidade democrática” (Evangelicals and Politics in Asia, Africa and Latin America). Quando a Igreja reage a críticas com acusações de perseguição, ela corre o risco de confundir perda de hegemonia cultural com vitimização real.
A ideia de perseguição, mesmo quando infundada, possui um enorme potencial de mobilização. Ela reforça a identidade coletiva (“nós contra eles”), gera engajamento político e emocional e fortalece lideranças que se apresentam como “defensores da fé”.
Essa estratégia, contudo, pode ter efeitos colaterais perigosos. A socióloga Marina Basso Lacerda (2019) observa que parte do discurso evangélico contemporâneo no Brasil utiliza o “martírio simbólico” como ferramenta política, associando críticas legítimas a uma suposta guerra cultural. Isso cria um ambiente de polarização e dificulta o diálogo com a sociedade civil.
Além disso, esse tipo de narrativa pode banalizar a perseguição real, aquela enfrentada por cristãos em países onde a fé é proibida ou punida com prisão e morte.
O desafio para a igreja brasileira é aprender a diferenciar oposição cultural de opressão religiosa. A primeira é inevitável, e até necessária, em uma sociedade plural; a segunda exige denúncia e ação internacional.
A Escritura nos convida não ao ressentimento, mas à sabedoria:
“Se possível, quanto depender de vós, tende paz com todos.” (Romanos 12:18)
“Estejam sempre preparados para responder a todo aquele que lhes pedir razão da esperança que há em vocês, mas façam isso com mansidão e respeito.” (1 Pedro 3:15)
A maturidade evangélica no espaço público brasileiro passa por abandonar a lógica do “nós contra eles” e adotar uma postura dialogal, crítica e confiante, ciente de que a verdade do Evangelho não depende de privilégios políticos, mas da fidelidade ao testemunho de Cristo.
O Brasil continua sendo um dos países mais livres do mundo para a prática religiosa. A Igreja cresce, se multiplica e influencia todas as esferas da sociedade. Diante disso, falar em “perseguição” em termos absolutos é, muitas vezes, mais reflexo de insegurança cultural do que de realidade histórica.
O mundo mudou, e com ele, o papel público da fé. Cabe aos evangélicos discernir os sinais do tempo: resistir quando houver injustiça real, dialogar quando houver discordância e abandonar o vitimismo quando ele servir apenas para mascarar a perda de privilégios.
No fim das contas, o testemunho cristão se fortalece não quando grita perseguição a cada crítica, mas quando encarna o Evangelho com humildade, coragem e amor.
Gedeon Lidório
Missionário, pastor, educador e psicanalista
Instagram: @gedeonlidorio
E-mail: gedeon@lidorio.com.br
Site: www.gedeon.lidorio.com.br
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