Há algumas falácias bíblico-teológicas que realmente são mescladas com as mensagens que vivemos no dia a dia e que nos enganam, nos trazem demonstração de que a vida é um dualismo incrivelmente pesado e vivemos em guerra conosco, com Deus, com o mundo, com o diabo e com as pessoas, como se pudéssemos realmente separar algumas coisas de dentro de nós.
Uma destas que tenho visto ultimamente é a questão da carne e do espírito. Paulo usa algumas imagens fortes para nos mostrar várias coisas quando no capítulo 5 de Gálatas nos expõe a guerra que existe dentro de nós.
Ao contrário do que se pensa, entendo que esta guerra, este ponto de tensão na verdade não é algo que será resolvido, pois esta tensão, esta dura realidade entre viver carnalmente sendo justificado pelo sangue do Cordeiro não deveria nos fazer querer estabelecer um dualismo ferrenho da carne contra o espírito, mas sim, entender, à medida em que vivemos que esta tensão não será resolvida pela simples mortificação da carne, pois na CARNE está envolvida muito mais que pecados ou coisas que não são de Deus, mas sim uma completitude do ser humano na sua condição de vida.
Não há como vivermos sem a carne, este é um ponto, mas muitos tentam viver no espírito, como se fosse possível viver apenas assim. Esse dualismo é gnóstico e traz um mal tão grande quanto o entender que nada existe.
O que é viver no espírito? Seria viver em oração, em constante consagração, em constante jejum, em constante e incessante práticas espirituais? Vivemos assim? Conseguimos tal feito? Creio que não. Quando olho pra Jesus, que mesmo sem pecado em sua vida, padecia com os motivos que todo ser humano tem na sua carne. Ele sofria com o pecado em que estava inserido na condição humana, mesmo que não houvesse pecado nele.
Ele sentia fome e procurava comida. Ele não vivia só de jejum. Ele conversava com as pessoas e vivia com elas e não somente orava e vivia uma vida espiritual. Jesus sofria e chorava com suas dores e necessidades assim com de seus amigos e conhecidos e até agonizava perante suas dores e necessidade humanas e não somente andava pairando com um ser puramente espiritual. Jesus olhava para a condição humana carnal e se apiedava, tinha uma atitude de não julgamento, mas de amor e consideração. Ele reconhecia que a carne afetava tanto a vida humana que nos fazia não ter condições de expressar-nos puramente diante de Deus ou diante de outros.
Acho interessante que ele não condenava os pecadores – amava-os, mas condenava fortemente a religiosos hipócritas que viviam a vida fazendo “coisas espirituais” (dizimava, cultuavam, faziam sacrifícios, controlavam as pessoas, mantinham sobre o cabresto da lei contra a carne todos aqueles que eram considerados mais pecadores e principalmente culpavam pessoas por não viverem a vida de maneira espiritual – entenda aqui como a prática de vida que os fariseus ensinavam: fazer coisas, se abster de coisas, não falar certas palavras, seguir os dias, os sábados, não pensar no bem de outros se isso fosse quebrar uma destas leis espirituais e assim por diante…).
Jesus vem na contramão de tudo isso e apresenta um evangelho que se preocupa com as pessoas de maneira INTEGRAL. Sabe das limitações da nossa condição humana e não nos julga (“eu não vim para julgar o mundo, mas para salvar e dar a minha vida em favor de muitos”) mas vem justamente para nos suprir de condições de vida, não para que sejamos espíritos que andam, mas para que a condição humana possa ser aproveitada ao máximo em todas as suas dimensões. Ele sabe que não deixaremos o pecado, por isso veio para morrer por nós, pois sabe que não tínhamos e nem temos condições de viver esta vida em santidade que resultaria na salvação de nossas vidas.
Quando eu vejo esta guerra contra a carne e a vida não espiritual fico pensando em toda a dimensão que isto está sendo levado. Será que queremos com isso dizer que a única vida viável para Deus é a vida espiritual? E se sim, o que é isso mesmo? Viver a vida espiritual é viver como mesmo? Fora da nossa condição humana?
Minha condição humana me faz pensar em muitas coisas … tenho dúvidas sérias ao longo dos dias, sou ansioso com a chegada de coisas novas que não tenho controle, preciso de aceitação de outros para me sentir bem e fazendo parte de uma sociedade, gosto de coisas grandes demais para mim, sinto medo, frustrações, tenho uma formação humana familiar em que houve falhas que me levam a ter traumas, neuroses e tantas outras coisas mais… enfim, sou humano e cheio de pecados e minha carnalidade sempre anda exposta…
Entendo que a vida com Deus (Deus em mim e eu nele em Cristo através do Espírito Santo) vai contemplar também essa integralidade do meu ser, pois ele mesmo decidiu que viria habitar em mim, ao meu redor, me fazer companhia e cuidar das minhas necessidades e faltas. Ele sabe quem sou, me formou e sabe de tudo que penso ou faço e mesmo assim, sabendo de tudo, resolveu justificar minha vida, morrer por mim, me trazer redenção e me transformar de dia em dia. Essa transnformação, penso eu, não é algo que vai me fazer viver cada vez menos humano e cada vez mais espírito, pois não é o plano de Deus olhar para a condição humana que ele fez perfeita e se alegrou jogar tudo para o mal e me rasgar desta carne que sou e carrego. Ele vai me transformar de maneira integral e viver a vida como Jesus é o alvo da vida de Deus em nós.
Viver em espírito então precisa abranger esta condição humana e em meio à tantas dificuldades que não sabemos nem exprimir ele intercede por nós traduzindo aqueles gemidos inexprimíveis que nosso inconsciente emite e que não sabemos como lidar. Essa condição humana não nos escravisa mais, pois fomos feitos novas criaturas e ser novas criaturas não singnifica que não viveremos a tensão da vida humana normal e comum. Viveremos e sempre traremos essa humana condição em nós, graças a Deus por isso, foi ele que nos fez e teceu cada uma das nossas fibras e partes. Ele nos amou e nos amou como somos – nem mais, nem menos, por isso não há na Bíblia uma negação de mim mesmo, o meu eu, a minha pessoa, mas sim um Deus que vem em carne para redimir-nos e fazer que sejamos cada vez mais parecidos com ele.
Não entendo então o viver espiritualmente como viver fora na condição humana limitante, mas em meio ao caos da vida a manifestação de Deus me anima e me traz paz, porque mesmo que eu seja fraco posso me gloriar nestas fraquezas, parafraseando Paulo, porque o poder e a manifetação de Deus se mostra quando estou fraco.
Viver a vida na dimensão humana é viver de maneira integral e percebendo a condição limitada que temos, conscientizando-nos cada dia mais que mesmo fracos somos habitados por Deus e essa habitação se reverte em crescimento, em transformação. Não devemos viver pensando que a única vida possível é a espiritualizada pois senão fracassaremos pois não poderemos viver assim. A vida não deve ser um céu na terra mas o céu, a vida de Deus, precisa ser manifesta em tudo o que vivemos na nossa condição humana e assim, mesmo nessa limitação que temos, glorifiquemos o nome dele.
Então, creio, que a orientação deve ser: não vivamos este dualismo gnóstico de maltratar a carne para enfatizar o espírito – não somos seres divididos, mas integrais, feitos de massa carnal pecadora limitada mas também habitação do Espírito Santo de Deus. Entendamos nossas limitações e não nos deixemos levar por superstições religiosas banais que somente nos colocarão em condição de cada dia mais sermos frustrados conosco e com nossa força em nos manter de pé e escolhermos nosso caminho. Vivamos o caminho escolhido por Deus, ele sabe o que faz.